Dançando com o diabo: uma crítica sobre "Pecadores" de Ryan Coogler
Um dos filmes mais aclamados de 2025, eleva o olhar do diretor e o coloca entre os grandes nomes rumo ao Oscar.
“Existem lendas sobre pessoas que têm o dom de fazer uma música tão pura que pode rasgar o véu entre a vida e a morte, invocar os espíritos do passado e do futuro.”
Já tem alguns anos desde que o cinema decidiu investir em novos gêneros para filmes protagonizados por pessoas negras e creio que esse seja um dos maiores acertos de Ryan. O filme de terror vai tratar sobre a história de dois gêmeos, Fuligem e Fumaça, interpretados por Michael B. Jordan, voltando para sua cidade natal com a intenção de abrir um clube de Blues. Mas na grande noite de inauguração, novas criaturas ameaçam o local. Aqui, não temos exatamente temáticas raciais centralizadas, mas a vemos em todas as cenas. No roteiro, nos personagens, nas músicas que cantam, em sua cultura, na época em que vivem, mas o principal é que tudo isso é implícito. Ryan Coogler nunca deixa muito claro em seus filmes o racismo escancarado, ou um roteiro militante. Assim como fez em “Pantera Negra”, ele prefere falar sobre o assunto, mas dar foco em enaltecer a cultura negra, a tornando conhecida. Filmes assim me lembram do quanto a minha cultura é a própria arte. A arte flui por nós, ela vem de nós.
Eu confesso que comecei esse filme sem entender toda a aclamação dele. Mas foi só a cena do Sammie cantando começar, junto com a fala do Slim sobre o Blues e a da Annie sobre Blues e eu entendi. Ryan Coogler conseguiu colocar passado, presente e futuro da música negra todos em um mesmo local, em um mesmo nível. O rock que teve sua origem roubada dos negros, aqui volta ao pertencimento deles. O hip hop que tanto é julgado, aqui tem destaque e mistura aos outros ritmos. Isso sem mencionar os sons e ritmos religiosos presentes na cena. Tudo isso em um plano sequência que juntamente com a trilha sonora - “I Lied to You” - nos faz imergir dentro do filme. Todos os nossos sentidos se voltam para aquela cena. Ela é como o blues que Delta Slim, um dos personagens do filme, descreve:
“O blues não foi imposto a nós como religião, não, isso nós trouxemos conosco de casa. O que a gente faz é magia, é sagrado e rico. E esse ritual… vai curar nosso povo e nos libertar.”
A simbologia da religião, do pecado e do sagrado. O blues e a música como objeto de luta e resistência. É claro que quando se pensa em ancestralidade negra, logo somos levados às amplas religiões da África, muitas delas consideradas profanas e pecadoras. Mas quando Ryan utiliza os vampiros, os coloca exatamente nesse local de profano e demoníaco. E quem consegue achar uma solução para contê-los? Annie, a personagem que é mais ligada à espiritualidade no filme, é ela quem tem conhecimento sobre aqueles seres e é ela quem sabe como destruí-los. O diretor coloca a espiritualidade dela no âmbito do sagrado, aquelas que seriam consideradas o contrário.
O filme está inserido em um contexto de 1930, no Mississippi, em que pessoas negras ainda eram escravizadas (e isso é visto no filme) e os Estados Unidos passava pela segregação racial. A música e sua cultura foram a forma como os personagens encontraram para se libertarem. Era isso que o clube de blues do Fumaça e Fuligem significava, um lugar de refúgio, segurança, onde poderiam ser eles mesmos, sem medo. Mesmo que ao final do filme, tenha ficado claro que se tivessem permanecido ali, todos iriam morrer pelas mãos da Ku Klux Klan (organização terrorista supremacista branca que assassinava negros), o que não aconteceu já que Fumaça matou todos eles em uma cena épica e poderosa. Sabemos que uma das mensagens que Ryan quis passar, é que naquela noite, mesmo que fosse a última noite de blues, eles estavam vivos e livres. Ou não…
E para o personagem Sammie, primo de Fumaça e Fuligem, o Blues é exatamente isso. Um caminho para a liberdade. Antes de ir com seus primos, seu pai, que era pastor, lhe disse: “Se continuar dançando com o diabo um dia ele volta pra casa com você”. De certa forma realmente voltou. Para seu pai, o diabo na vida do filho era a música, mas pra ele, era a salvação. No final, vemos que ele virou um grande bluesman.
Os gêmeos são protagonistas muito bem feitos. Fuligem, com seus ternos cinzas com detalhes vermelhos, bem inspirado em trajes da máfia italiana da época e Fumaça com os detalhes azuis, ternos mais simples, mas também inspirados na máfia irlandesa. Talvez seja uma viagem minha, mas é interessante que o irmão mais velho seja Fumaça e o mais novo Fuligem, já que a fumaça vem primeiro e depois a fuligem. Seus nomes, na verdade, são Elias (Fuligem) e Elijah (Fumaça), um mais sério e maduro, o outro mais novo e mais brincalhão, não é atoa que Elias foi o escolhido para virar vampiro. Uma das coisas que eu mais gosto, é como Ryan demonstra os sentimentos românticos dos homens negros, que muitas das vezes são inibidos socialmente de demonstrar emoções. Nesta história, ambos os irmãos falam em voz alta o quanto são apaixonados por suas mulheres, permitindo ser vulnerável em uma época onde a última coisa que um homem negro podia ser era vulnerável.
Fumaça preferiu brigar com seu irmão a se deixar sucumbir e ter sua identidade roubada, mas no final, abriu mão de sua vida, para viver a eternidade ao lado de quem amava, sua bebê que havia morrido e Annie, o amor de sua vida. Já Fuligem escolheu ficar ao lado de Mary, a garota branca por quem ele era apaixonado. Sendo transformado por ela, passaram a vida juntos na imortalidade. É claro que não dá para deixar de fora a lealdade que os dois tinham. É perceptível a dificuldade de Fumaça em não ceder e ir com seu irmão, ele só não o seguiu, porque sabia que o Elias que ele conhecia não estava mais ali. É muito bom ver o brilhantismo de Michael B. Jordan ao entregar dois personagens idênticos, mas com suas complexidades tão distintas. Ele faz isso de uma forma onde o mesmo ator entrega características tão próprias dos personagens, que fica fácil de distingui-los logo de início.
Por último, mas não menos importante, a apropriação cultural que vem com o terror e vilania dos vampiros em “Pecadores”. Como já foi dito antes, Ryan não critica o racismo de forma explícita em seus filmes, ele te permite pensar a respeito. E um detalhe que ele colocou nos vampiros dessa história, é que Rimmick, o “líder” dos vampiros, quando transforma humanos, pega suas habilidades, seus pensamentos, sentimentos e sua cultura. Os vampiros aqui roubam a alma dos personagens e eles estavam atrás especificamente do Sammie, após ouvi-lo cantar. Ele fala pro jovem no final “eu quero sua história, quero suas músicas”, só que para o Sammie, o blues era tudo que ele tinha, era a história dele. E usar esse subjetivismo para falar de apropriação cultural em um filme que nos mostrou exatamente muitos dos povos, ritmos, gêneros e da cultura que foi roubada pelos brancos, é simplesmente genial. É inteligente, é delicado e muito forte. E quando Sammie luta por isso, ele mostra a resistência e a preservação da cultura negra que sempre existiu. Mesmo que houvesse muitos “vampiros” ao redor, alguém sempre estaria disposto a lutar para que sua cultura não fosse roubada.
Pecadores é um filme único e amplamente rico. Aqui a trilha sonora faz parte e complementa a narrativa. Os personagens são perfeitamente posicionados e em duas horas de filme, você consegue conhecê-los e entender suas ações ao longo do filme. Cada detalhe desse filme foi pensado para ser grandioso e para contar uma história que está além da narrativa, está dentro de toda a cultura negra. Ryan Coogler não só conta uma história — ele reconstrói memórias, repara invisibilidades e transforma a música em arma de cura.